Puc Viva 2008
A historicidade dos direitos
humanos
Maria Lucia
Silva Barroco
A noção
moderna de Direitos Humanos (DH) é inseparável da idéia de que a sociedade é
capaz de garantir a justiça – através das leis e do Estado – e dos princípios
que lhes servem de sustentação filosófica e política: a universalidade e o
direito natural à vida, à liberdade e ao pensamento. Filha do Iluminismo e das
teorias do direito natural, essa noção foi fundamental para inscrever os DH no
campo da imanência, do social e do político.
De
fato, é a sociedade moderna que inaugura prática política de declarar direitos,
assinalando que eles não são reconhecidos por todos; logo, precisam de um
consentimento social e político, o que não tinha sentido quando eram concebidos
como emanação de Deus (Chauí, 1989).
Ao
mesmo tempo, as Declarações registram situações históricas precisas: buscam
assegurar conquistas decorrentes de grandes mudanças sociais ou marcos
revolucionários, como por exemplo, as Declarações de Direitos das Revoluções
Inglesa (1640 e 1688), da Independência Norte Americana, das Revoluções
Francesas (1789) e Russas (1917); visam preservar a humanidade da violência, após
momentos de grandes traumatismos - com os
vividas na Segunda Guerra, com o fascismo e o nazismo, dando origem à
Declaração dos DH de 1948.
A configuração moderna dos DH representou um
grande avanço no processo de desenvolvimento do gênero humano, pois ao retirar
os DH do campo da transcendência, evidenciou sua inscrição na práxis
sócio-histórica, ou seja, no lugar das ações humanas conscientes dirigidas à luta
contra a desigualdade. Ao se apoiar em princípios e valores ético-politico
racionais, universais, dirigidos à liberdade e à justiça, a luta pelos DH incorporou
conquistas que não pertencem exclusivamente à burguesia, pois são parte da
riqueza humana produzida pelo gênero humano ao longo de seu desenvolvimento
histórico, desde a antiguidade.
Entretanto,
no contexto da sociedade burguesa os DH apresentam as seguintes contradições:
1) Os
DH se afirmam a partir da universalidade. A sua proposta universal esbarra com limites
estruturais da sociedade capitalista: uma sociedade que se reproduz através de
divisões (do trabalho, de classes, do conhecimento, da posse privada dos meios
de produção, da riqueza socialmente produzida);
2) Os
DH (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) são fundados na democracia
e na cidadania burguesa, o que revela seus limites reais, econômicos e
sócio-políticos, dependendo de cada país e contexto histórico;
3) A
sociedade burguesa é fundada na propriedade privada dos meios de produção o que
leva as Declarações de DH a incorporarem esse fundamento de modo contraditório,
pois a propriedade é privada, mas as leis são universais. Assim, os DH
supõem a propriedade como direito natural e o Estado e as leis como instâncias
universais. Quando a propriedade privada é posta em risco o Estado deve
protegê-la dos não proprietários (Chauí, 1989). Ocorre que ele não está “acima”
das classes, ou seja, não é de fato um árbitro neutro; logo, ao usar da
violência para proteger a propriedade e – ao mesmo tempo - tratar todos os
homens como “iguais” – afirmando que todos têm direito natural à propriedade em
uma sociedade excludente, torna evidente a contradição entre o discurso
abstrato da universalidade e a defesa de interesses privados. Como bem afirma
Chauí, as Declarações de DH, nesse contexto, ao afirmarem a propriedade como
direito natural acabam por legitimar a violência ao invés de combatê-la. Por
isso, sem negar a sua importância, as Declarações de DH, diz ela, afirmam mais do podem e menos do que deveriam
afirmar (Chauí, 1989).
4) Porém,
mesmo preso a interesses privados, o Estado não pode se restringir ao uso da
força e da violência; por isso, para garantir a sua legitimidade e hegemonia,
incorpora determinadas reivindicações das lutas populares por direitos.
Desse
modo, com o desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes, em suas várias
configurações, o que se observa – sob o ponto de vista da história social dos
DH (Trindade, 2002) - é que a partir de determinado momento histórico, a
bandeira dos DH passa para as mãos dos sujeitos políticos que não pertencem à
burguesia: os trabalhadores: criadores da riqueza social, mas desapropriados do
direito de sua fruição material e espiritual.
Historicamente
esse marco é situado na segunda metade do século XIX, após a inflexão histórica
de 1848 (Netto, 2006), que ao mesmo tempo explicita o caráter de dominação do
projeto burguês e fortalece os movimentos populares e proletários em sua
afirmação de um projeto político de classe, transitando – da oposição ao
capitalismo – para um projeto socialista. Trindade assim se refere aos DH nesse
contexto:
“À
medida que passara de revolucionária a conservadora, a burguesia impusera,
desde o triunfo de 1789, a sua versão de classe dos DH. Essa versão embutia a
contradição óbvia entre a liberdade (burguesa) e a igualdade, conferindo aos DH
a função social de preservação do novo domínio. Não tardaria para que isso
fosse percebido e formulado no plano conceitual. Mas, primeiramente, essa
inquietação se manifestou no terreno da prática social: de modo confuso,
movidos mais pelo desespero do que por uma consciência socialmente organizada,
o proletariado emergente da Revolução Industrial e as camadas sociais que lhe
eram próximas começaram a engendrar caminhos próprios de autodefesa” (Trindade,
2002, pág. 117).
No
âmbito das lutas por direitos, as formas de resistência, desde as mais
rudimentares - como as de destruição das máquinas promovidas durante o início
do século XIX - vão dando lugar a formas mais organizadas de cooperação e
pressão dos trabalhadores em face do Estado e do empresariado para a obtenção
de direitos que visam garantir minimamente a sua reprodução como força de
trabalho para o capital; direitos que se ampliam ou não, atingindo patamares
que vão além da subsistência física dependendo da organização política dos
trabalhadores e da conjuntura de cada momento histórico. De toda maneira, são
conquistas resultantes de lutas marcadas pelo enfrentamento com a violência e a
repressão, por parte do Estado e de seu aparato policial.
Assim,
a história social dos DH é o resultado da luta de classes, da pressão popular,
da organização dos trabalhadores e dos sujeitos políticos em face da opressão,
da exploração e da desigualdade. Trata-se de uma história de lutas especificas
progressistas que se conectam com outros tipos de luta: anticapitalistas,
revolucionárias, de libertação nacional, etc., tendo por unidade a defesa da
liberdade e da justiça social.
É dessa
forma que as Declarações de DH incorporam avanços das lutas populares, o que
ocorreu, por exemplo, em 1948, quando os direitos sociais, econômicos e
culturais foram agregados aos direitos civis e políticos, conquistados através
das lutas do movimento operário dos séculos XIX e XX e implementados com a
Revolução Russa. Ao longo da história, os diversos movimentos de DH, como os de
mulheres, negros, homossexuais, vão dando visibilidade a suas lutas específicas
e aos diferentes aspectos da discriminação e da desigualdade social. No campo
dos direitos sociais e econômicos, não podemos ignorar a força de pressão do
movimento sindical e da organização política da esquerda, nas lutas pela viabilização
dos serviços públicos de saúde educação, habitação, trabalho, previdência,
assistência social, etc. na década de sessenta do século vinte.
Como já dissemos, embora em certos momentos
históricos, os movimentos de DH alcancem vitórias significativas, permanece, ao
longo de sua história social, a contradição que os inscreve na sociedade de
classes: a defasagem entre os seus pressupostos universais e a sua objetivação prática
em estruturas sociais fundadas em divisões de classe, de poder econômico e
sócio-político. Na verdade, a necessidade
de reivindicar direitos, já atesta a sua ausência na vida social, donde se evidencia
que – em dadas condições históricas – a sua universalidade tende também a se
tornar abstrata.
Entre outras determinações, a abstração dos
DH é realizada graças ao seu uso ideológico pelo discurso neoliberal. Foi “em
nome” dos DH que em 2001, após os atentados de 11 de Setembro, o governo Bush
desencadeou a “Guerra ao Terror”; uma guerra idealmente voltada a “salvar” o
mundo do “eixo do mal”, embora fosse dirigida, concretamente, para a obtenção
de uma hegemonia econômica e política do grande capital. Segundo Naomi Klein
(2008), as guerras fazem parte do que ela denomina o complexo do capitalismo de desastre: um conjunto de estratégias do
capitalismo contemporâneo para o enfrentamento de situações como as das guerras
ou dos desastres naturais, a partir de um modelo de administração baseado em
uma lógica privatista, voltada exclusivamente ao lucro.
No entanto, o discurso humanitário oculta essa
lógica perversa. No caso da guerra do Iraque, apesar dos EUA terem obtido lucros
inegáveis, por exemplo, os adquiridos com o comércio de armas e a manutenção
das Forças Armadas dos Estados Unidos - que é hoje uma das atividades
econômicas que mais crescem no mundo (Klein, 2008, pág. 22) -, poucos têm
consciência de que a ajuda humanitária aos países atingidos pela guerra ou
pelos desastres está vinculada a essa lógica. Como revela Klein, a ajuda humanitária
e a reconstrução dos países com fins lucrativos foram testadas pela primeira
vez no Iraque e já se transformaram em um novo paradigma global. Não importa
que a destruição total tenha sido feita por meio de uma guerra ou de um
furacão: o enfrentamento dos resultados é o mesmo, ou seja, não é mais deixado
nas mãos da UNICEF ou de organizações sem fins lucrativos quando pode ser dado
a grandes empresas de engenharia norte americanas.
O
capitalismo contemporâneo se caracteriza pela extrema fragmentação dos processos
sociais e de suas mediações e contradições. Sem a devida apreensão dos vínculos
sociais que sustentam as relações dos indivíduos no tecido social, o senso
comum e as teorias que adotam como fundamento a negação destes vínculos, ocultam
a relação entre os indivíduos sociais e sua condição de classe, sua inserção no
mundo do trabalho, negando a sua capacidade de forjar o amanhã; ignoram a
processualidade histórica afirmando a vigência do efêmero, a inexistência de um
futuro projetado politicamente. O discurso universal abstrato dos DH,
evidenciado pela ideologia neoliberal, é a forma de pensar dominante desse
contexto.
Trata-se
de uma situação histórica de aprofundamento do abismo entre a desigualdade e a
liberdade; entre a riqueza e a pobreza que atingem níveis nunca vistos: a
miséria de milhares em detrimento da riqueza de poucos; logo, uma situação de
perda relativa de conquistas no campo dos DH, assim caracterizada:
1)
a pobreza não atinge somente os países do sul; mas também os países desenvolvidos;
mais de 100 milhões de pessoas sofrem privações nas sociedades mais economicamente
mais ricas;
2)
O enxugamento do Estado, nos países onde o ajuste estrutural neoliberal foi
implantado, levou a uma diminuição dos gastos com os programas e serviços
públicos de atendimento a necessidades como saúde, educação, habitação,
previdência, etc. que passaram - ou a iniciativa privada ou a filantropia da
sociedade civil;
3)
a miséria é material (atingindo o trabalho e a vida em geral), e espiritual
(reproduzindo formas de alienação na totalidade da vida social);
4)
A desproteção social e a insegurança generalizam-se, fragilizando a vida, a
saúde, gerando formas de violência inimagináveis;
5)
observa-se o refluxo da organização política de classe dos trabalhadores,
rebatendo na organização dos movimentos e reproduzindo uma descrença
generalizada na política;
6)
uma das políticas decorrentes desse contexto é o de criminalização da pobreza,
ou seja, de culpabilização dos pobres pela sua situação social; o que caminha
ao lado da naturalização da pobreza (a idéia de que essa condição é natural,
isto é, sempre foi assim e sempre será) e da tolerância zero, que segrega aqueles que a priori são culpados: os negros, os imigrantes, os homossexuais,
os usuários de drogas, todos “os diferentes”.
7)
esse contexto gera uma cultura de desigualdade e de violência cujos resultados
para os DH se expressam sob a forma de um crescente processo de desumanização que expressa a miséria
material e caminha ao lado da mais assustadora miséria espiritual. Por exemplo,
se mostra na intolerância religiosa, nas limpezas étnicas, nos genocídios, nos
estupros coletivos, nos crimes provocados por ódio discriminatório. Nos EUA,
por exemplo, esses crimes por ódio, segundo dados estatísticos do FBI, de 1997,
mostram que de 11 mil casos, 5.396 ocorreram em função de raça, 1.401, por
religião, 1016 por orientação sexual e 940 por origem étnica (Lindgren, 2005,
pág 17).
8)
a defesa dos DH perde o seu vigor, é acusada de se constituir na defesa de “bandidos”,
marginalizando, também, os profissionais e militantes que defendem determinadas
populações segregadas socialmente.
Segundo
Lukács, existe uma grande idéia ética, desde Aristóteles, que entende que o
homem - sendo criador responsável do
próprio destino – pode também determinar o destino da humanidade (Lukács,
2005, pág 215). Para ele, Marx deu um
tratamento teórico-metodológico radicalmente novo a essa idéia. De fato, ao conceber que a autocriação
do homem e conseqüentemente do seu destino é fruto da práxis do próprio homem e
que o destino humano não depende da vontade de um indivíduo isolado, mas, de um
projeto político coletivo que pode ou não se realizar o em determinadas
circunstâncias históricas, Marx trouxe a questão do futuro da humanidade para o
campo da práxis político-revolucionária e das possibilidades históricas.
Pensar
os DH a partir desse referencial nos leva a ter dois pontos de referência: as
possibilidades do presente e o horizonte de um projeto futuro. A defesa dos DH
no contexto atual remete a uma reflexão que não pode deixar de contemplar as
estratégias para o seu enfrentamento, o que significa:
1) afirmar
a importância da luta de resistência em face do avanço das diversas formas de
desumanização;2) fortalecer ações de denúncia sobre violações dos DH; 3) dar
visibilidade a práticas voltadas ao reconhecimento social dos DH; 4) fortalecer
uma cultura crítica de defesa dos DH, através da implementação de cursos,
debates, iniciativas da mídia, ações educativas, etc.; 5) desvelar o discurso abstrato dos DH, revelando o seu
significado e a sua função ideológica;6) contribuir para vincular as motivações
éticas às ações políticas, dentre outras.
Esse enfrentamento, como nós o
entendemos, está conectado a um projeto de sociedade que não cabe nos limites
do capitalismo: supõe a sua superação. Assim, em face da barbárie que se revela
com o avanço das conseqüências destrutivas do capitalismo para a vida – em
todas as suas dimensões – e tendo em vista os limites objetivos da universalização
dos DH na ordem do capital, sua luta é necessária, mas, também, limitada. Por
isso a nossa luta é atual e urgente, mas implica na consciência política de que
seus limites podem ser superados para além desta sociedade, na direção de uma
emancipação humana e da construção de uma sociedade na qual não seja preciso
lutar por direitos.
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Este texto é uma versão modificada da Palestra apresentada na mesa Conflitos
Globais e a violação dos Direitos Humanos: a ação do Serviço
Social, na Conferência Mundial de
Serviço Social, promovida pela Federação Internacional de Trabalho Social (FITS)
e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em Salvador (Bahia), em
Agosto de 2008, publicada na PUC ViVa:
Revista da Associação de Professores da PUC/SP, Dezembro de 2008.